Marcelo Rebelo de Sousa, o afeto e as selfies. E porque é que isso está a funcionar?
31.12.2016 às 8h30
Em contraciclo com um mundo de gente zangada e divorciada dos políticos, Marcelo Rebelo de Sousa, figura política do ano, substituiu a crispação pelo afeto. Como conseguiu fazer da estratégia de 'selfies' uma razão de Estado e porque é que isso está a funcionar?
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A Rosa dos Ventos indica-nos a volta completa do horizonte. Com ela, praticamente todos os pontos na linha do horizonte podem ser localizados. A Rosa dos Ventos bem podia servir de metáfora alusiva aos primeiros nove meses de mandato do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Aos 67 anos, o PR revela uma invejável vitalidade. E em viagens, visitas, encontros e declarações, terá percorrido todos os pontos intermédios apontados com precisão ao longo dos 360 graus da conhecida representação gráfica. Ora, a Rosa dos Ventos está desenhada na praça principal do Centro Comercial Colombo. A mesma onde Marcelo, nesta segunda-feira, abancou para assinar e vender leu bem, vender a agenda solidária do IPO (Instituto Português de Oncologia) para 2017. A receita das vendas reverte para o serviço de Pediatria do próprio Instituto.
Quatro dias antes, o Presidente da República fez furor no Natal dos Hospitais.
José Carlos Malato e Catarina Furtado tiveram a honra de entrevistar, em direto, o primeiro chefe de Estado a participar no popular programa anual da RTP, em 58 edições e oito presidentes da República depois. O alinhamento do Natal dos Hospitais conseguiu encaixá-lo entre José Cid e o Grupo de Dança da Casa Pia. Marcelo entrou logo a "abrir hostilidades", dirigindo-se ao veterano cantor pop: "Eh, pá, você nunca envelhece!". Dantes, podia assistir-se à rara atuação dos Parodiantes de Lisboa na sua única aparição televisiva do ano.
Hoje, temos Marcelo e o Natal dos Hospitais é só mais uma das aparições da estrela política de 2016. O PR falou de solidariedade, de refugiados e de Guterres na ONU. Divertiu a audiência com historietas sobre as suas próprias consoadas natalícias. Dez minutos depois da fulgurante entrada, disse adeusinho e foi pregar para outra freguesia. Deve ter revisto uns exames, porque, no dia seguinte, estava de auscultadores nos ouvidos, numa emissão da TSF, a matar saudades, e a dar notas, desta vez, ao País. "Entre o 14 e o 15" revelou o generoso Marcelo, fazendo a ressalva de que, relativamente aos níveis do investimento, o País passava com um "suficiente menos"...
AQUELE DIA, NA TASCA
Marcelo está em todo o lado: em montagens fotográficas, já lhe pintaram na bochecha o sinal de Fernando Alves, o conhecido "emplastro" do Porto. Sem palavras. Em nove meses de mandato, Marcelo esteve, oficialmente, em mais de meia centena de localidades do País, incluindo a Madeira, faltando-lhe o Algarve e os Açores, que visita no início do próximo ano. Cá dentro ou lá fora, avistou-se com cerca de 30 líderes mundiais.
Recentemente, explicando os frequentes sucessos da diplomacia portuguesa, a propósito da eleição de António Guterres como secretário-geral da ONU, o site do prestigiado jornal espanhol El País constatava que, em seis meses em funções, o Presidente português se avistara com mais chefes mundiais do que os primeiros-ministros Zapatero e Rajoy em dez anos de governação. Mas o frenesim de Marcelo, que por força quer percorrer todos os graus das latitudes da Rosa dos Ventos, e que está a deixar a sua equipa de colaboradores, em Belém, embora feliz, exausta, tem sobretudo a ver com os caminhos de Portugal, que, em demanda de "afetos", percorreu muito mais vezes e com mais pormenor do que o brasileiro Mário Gil, na sua conhecida cançoneta.
Este foi o primeiro desiderato de Marcelo: num mundo crispado, cheio de eleitorados zangados com os políticos, onde o populismo extremista avança e os referendos parecem talhados para dar "não" independentemente do assunto que discutem, o Presidente português manobra a sua nau em contraciclo: descomprimir, descrispar, reconciliar. Ele tinha avisado, em campanha: "Quero contribuir para reconciliar os portugueses, porque o País está muito crispado". Perguntaram-lhe como. "Com afeto", respondeu candidamente.
Parecia um lugar comum, uma ideia feita. Na prática, seria um conceito vago, de difícil aplicação. Mas Marcelo descobriu uma fórmula: a Presidência, exerce-a na rua, a tirar selfies, a beijar crianças e velhinhas, a dar palmadas nas costas dos homens, a entrar em tabernas.
Literalmente: em Moura, a tasca era pequena e não tinha outra saída. A segurança fechou a porta para limitar a entrada. Mas Marcelo, que já bebia um copinho ao balcão com os compinchas da casa, ordenou: "Abram as portas, se os senhores da televisão percebem que estou aqui e não podem entrar, vamos ter chatice..." Sim, ele distribui afeto e quer que o vejam a fazer isso.No léxico presidencial, já entrou a palavra "marselfie", para designar a política de selfies com que se aproxima da população. No facebook, o atual diretor do DN, Paulo Baldaia, admirava-se, no próprio dia da tomada de posse, e ilustrava a história com uma foto comprovativa: quando descia a Calçada da Estrela em direção ao Parlamento, para, na qualidade de jornalista, cobrir a cerimónia, sentiu uns passos atrás de si e uma voz familiar: "Bom dia, Paulo, está bom?". Estava um dia bonito e o Presidente que daí a minutos tomaria posse, descia com ele a rua, gozando o sol primaveril. Dois dias depois, passearia pelo Chiado, para dar uma vista de olhos à exposição de fotografia da VISÃO, patente no Largo Camões, sobre violência doméstica. E nunca mais parou. Foi visto, de calções e toalha ao ombro a tirar selfies, numa rua de Cascais, à saída da praia. Vender agendas no centro Colombo, ao fim da tarde de um dia de compras, na semana do Natal, para ele, é canja.
O ESCUDO HUMANO DO PRESIDENTE
Será que Marcelo está a construir toda esta cumplicidade com os portugueses apenas pelos bonitos olhos dos seus concidadãos? Estará apostado numa reeleição plebiscitaria, batendo o recorde eleitoral de Mário Soares em 1991? Ou, pelo con- trário,quer fazer um mandato perfeito e sair em ombros ao fim de cinco anos? Analistas têm chamado a atenção para a estratégia delineada, que mistura simpatia, cálculo político e genuíno gosto pela função. Detenhamo-nos um pouco no cálculo político, talvez o aspeto menos visível dos primeiros tempos do mandato presidencial. Quase no início, Marcelo advertiu para a existência de um ciclo político que termina nas eleições autárquicas de 2017.
Foi uma espécie de prazo. E esse prazo pode ditar o final do período de validade de Pedro Passos Coelho, com quem o Presidente não tem química e com quem não partilha nem o diagnóstico nem o projeto. Sem desistir da ideia de Bloco Central, que pode sair da cartola, sob os auspícios do PR, com um novo líder do PSD e quando a "geringonça" se partir. Tudo pensado: a mesma lógica preside aos seus esforços para conseguir um acordo de concertação de médio prazo, que garanta um mínimo de paz social, mesmo sem o comprometimento da extrema esquerda no apoio parlamentar a uma solução governativa...
António Costa, com quem Marcelo teve sempre uma relação cordial (desde os tempos em que o primeiro-ministro foi seu aluno) não pode ser demasiado confiante. O PR já demonstrou que não é um corta-fitas. Em, pelo menos, três vetos políticos. Com isso, obrigou o Governo e os partidos que o apoiam a recuar quase sem um queixume.
A ligação direta que Marcelo estabeleceu com a população é a melhor garantia de que, na dúvida, a opinião pública está com ele. Os portugueses são o escudo humano que lhe dá o conforto necessário para intervir todos os dias.
O seu claro afastamento da oposição e o respaldo que geralmente dá ao Governo conferem-lhe autoridade moral para, quando for preciso, contrariar o Executivo, sem que António Costa o possa acusar de quebra de lealdade ou confiança.
A estratégia de Marcelo passa por não oferecer razões de queixa ao primeiro-ministro, de forma que, quando decidir contra o Governo, não possa ser acusado de estar a fazer oposição.
O seu comportamento durante a crise em torno da administração da Caixa Geral de Depósitos foi tudo menos cómodo para o Governo. Primeiro, insurgiu-se contra os salários milionários uma guerra em que foi vencido mas em que não se rende e, depois, num comunicado juridicamente fundamentado, explicou por que razão os administradores deveriam entregar as declarações de rendimentos e património. Mais, e isso terá passado despercebido, foi nesse texto que o PSD se inspirou, ao fazer passar uma lei que conseguiu, pela primeira vez, dividir a "geringonça", obtendo o voto favorável do Bloco de Esquerda...
OS FEELINGS DO PRESIDENTE
Recentemente, ao comentar e ele comenta tudo! a quebra das exportações, em outubro, relativamente ao período homólogo, o Presidente desdramatizou, servindo de rede ao primeiro-ministro (que estava presente), e dizendo ao jornalista que o interpelava: "Tenho um feeling sabe que às vezes o Presidente da República tem feelings que os números de novembro serão muito melhores..." O primeiro-ministro, desfazendo-se em salamaleques, completou: "Se o senhor Presidente da República tem um feeling, nós acompanhamos o feeling do senhor Presidente da República. Costumamos sempre acompanhar os feelings do senhor Presidente da República!" Pudera: já no início do outono, muito antes de serem conhecidos os bons números do crescimento da economia no terceiro trimestre, Marcelo se tinha descaído: "Acho que vamos ter uma boa surpresa". Informação é poder, e Marcelo exerce-o: quer saber tudo, acompanha os números com curiosidade metódica, faz perguntas, analisa tendências e exige o acesso à informação muito antes de ela ser oficial. E é assim em tudo: no fim de semana do Congresso do PSD, em abril, colou--se à televisão, sabia em que altura cada orador interviria e terá inundado de sms os telemóveis de alguns congressistas, com dicas e comentários...
A célebre fotografia, tirada em França, quando, debaixo de chuva, o PR falava a uma multidão de emigrantes portugueses, e António Costa o protegia com o seu guarda-chuva aberto (uma das fotos que Marcelo aceitou legendar para esta edição, ver pág. 40) é a ilustração dos afetos institucionais.
Mas quando o PR vetou politicamente uma lei (que permitiria ao fisco conhecer as contas bancárias dos contribuintes), afirmando que não era oportuna, quase sem mais explicações, o Governo limitou-se a dizer, timidamente, que voltaria a essa legislação quando fosse... mais oportuno.
UM PROVOCAÇÃO AO REI DE ESPANHA
Que se saiba (embora não seja impossível....) Marcelo já não toca às campainhas dos vizinhos antes de fugir, numa das suas traquinices favoritas, na juventude. Mas não deixa de revelar um ar traquinas na forma como fura o protocolo ou o reinventa. Na recente visita dos Reis de Espanha ao Norte de Portugal, Marcelo deu ordens específicas: pretendia convidar os monarcas para jantar em Guimarães, nas vésperas do feriado que assinala a restauração da Independência.
Mais, o PR tratou de assegurar que a estátua de D. Afonso Henriques estaria devidamente iluminada, acrescentando-lhe uma guarda de honra composta por quatro lanceiros de cada lado.
A grande proximidade a Filipe VI (aliás, um dos dois únicos chefes de Estado que esteve presente na cerimónia da sua posse), não o impediu de vincar bem, do ponto de vista simbólico, e com certa malícia, a soberania portuguesa.
Não obstante esta pequena provocação, o afeto estende-se à representação externa. Menos conhecido, na Europa e no Mundo, do que Cavaco Silva ou, sobretudo, Mário Soares, Marcelo tem feito uma forte aposta na política externa, que faz, aliás, parte das suas competências como Presidente.
A primeira visita foi ao Vaticano, vincando a importância histórica das relações com a Santa Sé, desde que, em 1179, a bula Manifestis Probatum, do papa Alexandre III, reconhecia a independência do reino português. Aproveitou para estabelecer um vínculo com o Papa Francisco, com quem se identifica e em cujo estilo se inspira para exercer o seu próprio mandato. E será bem curioso verificar como é que estes dois indisciplinados líderes se comportarão, daqui a cinco meses, durante a visita de Francisco a Portugal...
No regresso de Roma, fez uma escala para a visita a Espanha, reforçando os laços de vizinhança.
Próximo de Moçambique por razões afetivas, capitalizou essa proximidade com uma visita oficial.
Estes três Estados fazem parte do triângulo do afeto, que procurou estender às restantes três dezenas de líderes mundiais com quem esteve.
Intramuros, não foi menos atento: A extensão da cerimónia de posse à cidade do Porto, para onde partiu ao segundo dia de mandato, bem como a comemoração do 10 de Junho com os emigrantes portugueses em França, reforçaram a ideia do afeto com a população. Ao Porto, deu face e estatuto. Aos emigrantes, sentido de integração.
As suas constantes deslocações não são, pois, realizadas de forma avulsa ou casuística: é tudo pensado friamente e quase tudo sai da sua cabeça, surpreendendo assessores, colaboradores, protocolo, segurança e staff em geral.
Recentemente, o seu chefe da Casa Civil, Fernando Frutuoso de Melo, antigo diretor de Cooperação e Política Externa da Comissão Europeia, foi dispensado de o acompanhar na viagem à América Latina, por motivos de saúde. O homem foi acometido de forte indisposição e aconselhado, pelos médicos, a abrandar o ritmo.
E Marcelo terá comentado o caso, mais ou menos nestes termos, meio a sério, meio a brincar: "Pois, isto aqui em Belém é muito mais duro do que a vidinha que se leva em Bruxelas...".
Tem razão. Pelo menos, lá, ninguém é obrigado a ir vender agendas para os centros comerciais em dia de compras de Natal. É que, para acompanhar Marcelo, até recorrendo à Rosa dos Ventos se pode perder o Norte.
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